Livro “Anatomia de um Desastre” cita Contas Abertas
O livro “Anatomia de um Desastre”, que conta os bastidores da crise econômica que levou o Brasil a pior recessão da sua história, cita a participação da Associação Contas Abertas na descoberta das chamadas “pedaladas fiscais”. A publicação foi escrita por Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira.
O livro conta que em janeiro de 2014, a Contas Abertas encaminhou ao jornalista e colunista do jornal Valor Econômico, Ribamar Oliveira, um dos autores do livro, informações sobre o aumento substancial de restos a pagar que tinham sido deixados para 2014, com o objetivo de melhorar o superávit primário de 2013.
À época, conforme mostra a publicação, o secretário-geral da entidade, Gil Castello Branco, chamou a atenção também para a grande concentração de ordens bancárias para pagar investimentos emitidas pelo Tesouro no período de 28 a 31 de dezembro. Com isso, o dinheiro só saiu efetivamente do caixa do Tesouro no primeiro dia útil de 2014, o que também inflou o superávit primário do ano anterior.
O livro lembra também que em 17 de janeiro de 2014 a Contas Abertas encaminhou denúncia ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, com o intuito de que a Corte de Contas pudesse quantificar o real superávit primário de 2013 e tomar as medidas cabíveis em relação às manobras orçamentárias que o governo federal realizou no final de 2013. Na época, no entanto, a Associação chamou as manobras de “contabilidade postergada”.
O livro editado pela Cia das Letras foi lançado em Brasília no dia 29 de novembro e em São Paulo em 5 de dezembro. João, Claudia e Ribamar descrevem com muitos detalhes e análises apuradas os bastidores deste script que começou a ser produzido muito antes do escândalo da contabilidade criativa e das pedaladas fiscais.
Confira a íntegra da denúncia encaminhada pela Contas Abertas ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União,
Brasília, 17 de janeiro de 2014.
Ofício nº 017/2014
Excelentíssimo Senhor
Dr. Marinus Marsico
D.D. Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União
Excelentíssimo Senhor Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União,
Como é do pleno conhecimento de Vossa Excelência, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou as contas do governo federal de 2012 com 22 ressalvas e 41 recomendações. No Relatório Final sobre as Contas do Governo da República foram tecidas considerações, em 12 páginas, sobre o resultado primário da União em 2012, inclusive sobre as diversas operações triangulares “atípicas” – envolvendo a Caixa Econômica Federal (CEF), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Fundo Soberano Brasileiro (FSB) – que passaram a ser conhecidas popularmente e de forma depreciativa como “contabilidade criativa”. Paralelamente, o texto demonstra a preocupação do Tribunal com o crescimento relevante dos restos a pagar:
“Conforme demonstrado no item 3.3.3.5 deste relatório, o montante de despesas inscritas em restos a pagar tem aumentado consideravelmente nos últimos anos. Sob a ótica fiscal intertemporal, esse fato deve ser visto com atenção, pois, muito embora essas despesas não tenham impacto direto no resultado primário apurado no exercício de sua inscrição, porquanto não envolvem saída imediata de recursos do Tesouro Nacional, elas indicam um potencial desembolso futuro, ou seja, podem onerar o resultado primário de exercícios vindouros quando de seus pagamentos.”
Assim sendo, tendo em vista a preocupação desse Egrégio Tribunal, bem como as do mercado financeiro e de investidores nacionais e internacionais, a respeito das “condições em que se deu o cumprimento da meta de resultado primário da União em 2012”, creio oportuno levar ao conhecimento de Vossa Excelência alguns fatos inerentes à obtenção do superávit primário do governo central em 2013.
1 – Emissão de ordens bancárias de investimentos nos 4 últimos dias de 2013.
Em dezembro de 2013, até o dia 27, o governo federal pagou apenas R$ 2 bilhões de investimentos (GND 4). De sábado (28) à terça-feira (31), foram emitidas ordens bancárias que somaram R$ 4,1 bilhões. Em outras palavras, o governo emitiu em 4 dias ordens bancárias no dobro do valor que havia pago nos 27 primeiros dias de dezembro. As ordens bancárias emitidas nos últimos 4 dias do ano passado, possuem valor global superior ao montante desembolsado em todo o mês de novembro, que atingiu R$ 3,4 bilhões. Desta forma, as ordens bancárias emitidas no SIAFI a partir do dia 28 só foram sacadas em 2014, favorecendo o Primário de 2013 em detrimento do resultado do ano em curso. O quadro abaixo mostra que a concentração em 2013 foi atípica. Além disso, os investimentos no último mês do ano passado foram menores do que os de igual período em 2012, possivelmente como parte do ajuste para melhorar o superávit primário do governo central no ano findo.
2 – Crescimento relevante dos restos a pagar, notadamente dos processados.
O governo lançou em 2014 restos a pagar inscritos e reinscritos que somaram R$ 218,4 bilhões. Trata-se de volume recorde, superior em R$ 41,7 bilhões aos valores inscritos e reinscritos em 2013, que somaram R$ 176,7 bilhões.
Convém ressaltar que os restos a pagar estão distribuídos por diversas rubricas. Conforme consulta realizada no SIAFI tendo como base os dados de 2014 até 09/01, além dos R$ 86,8 bilhões de restos a pagar em “investimentos”, existem cerca de R$ 103,3 bilhões de restos a pagar em “outras despesas correntes” e R$ 25,4 bilhões em “inversões financeiras”.
Com o volume exponencial de restos a pagar – em 2002 eram cerca de R$ 24 bilhões – criou-se gigantesco “orçamento paralelo”, que fere gravemente o princípio da anualidade orçamentária. A título de exemplo, nos investimentos da União em 2013 (R$ 47,3 bilhões), foram pagos com o orçamento do ano R$ 16,9 bilhões. Por incrível que possa parecer, em decorrência dos restos a pagar foram desembolsados R$ 30,4 bilhões.
Agrava os fatos observar que dos restos a pagar inscritos e reinscritos (R$ 218,4 bilhões), R$ 33,6 bilhões foram restos a pagar processados, ou seja, já havia o empenho e o reconhecimento da prestação dos serviços contratados ou da entrega dos bens adquiridos.
Na virada 2012/2013, os restos a pagar processados eram de R$ 26,3 bilhões. Assim sendo, o acréscimo percentual foi de 27,8%, caracterizando o aumento das despesas que se encontravam ao fim dos exercícios prontas para serem pagas e cujos pagamentos acabaram sendo adiados para o ano seguinte. Tal crescimento percentual supera o das despesas primárias.
Dessa forma, protelando o pagamento de restos a pagar processados o governo inflou o superávit primário de 2013 em detrimento do resultado do ano em curso.
3 – Postergação de transferências de receitas para estados e municípios.
Parte do superávit primário do governo central no último mês de 2013 foi obtido com receitas que deveriam ser repassadas para os estados e municípios. Um exemplo é a parcela de dezembro do salário educação, de cerca de R$ 700 milhões, que só foi transferida no dia 30 daquele mês. Assim sendo, a receita só ingressou nos caixas estaduais em 2014. Também não foi transferida para as unidades da federação parcela do Imposto de Renda (IR) obtida no parcelamento especial de débitos tributários de controladas e coligadas no exterior das empresas brasileiras.
Além das transferências não realizadas, gasto de R$ 1,95 bilhão do orçamento de 2013, referente ao auxílio financeiro aos estados exportadores, foi adiado para janeiro. Embora a Exposição de Motivos mencionando urgência e atendimento de serviços públicos essenciais tenha a data do dia 19 de novembro de 2013, a Medida Provisória 629, só foi editada pela presidente da República em 18 de dezembro, prevendo que o montante seria repassado aos estados, em parcela única, 30 dias após a edição da MP. Assim, o governo postergou para janeiro de 2014 a transferência dos recursos do auxílio, pela primeira vez desde 2004 quando o repasse passou a ser efetuado nesse modelo.
Conforme informações apuradas pelo jornal Valor Econômico, em matéria publicada em 13/01/2014, alguns secretários estaduais de Fazenda afirmaram que em uma reunião do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), o Ministério da Fazenda prometera a liberação dos recursos em 2013. No caso do salário educação, o governo adotou como padrão transferir os recursos devidos aos Estados e municípios até o dia 25 de cada mês. Isso ocorreu ao longo de 2013, segundo os dados do Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira). O padrão, no entanto, mudou em dezembro, quando a ordem bancária para pagamento da parcela do salário educação só foi emitida no dia 30. Isso impediu que governadores e prefeitos recebessem o dinheiro ainda em 2013, pois os bancos não funcionaram no dia 31. A decisão do governo destoa do que ocorreu em 2012, quando a transferência da parcela de dezembro foi feita no dia 19 do mês. Houve, portanto, mudança de procedimento que afetou o fluxo financeiro de prefeituras e governos estaduais.
4 – Postergação de repasses do SUS.
A verba do Fundo Nacional de Saúde transferida diretamente aos estados e municípios foi reduzida em R$ 2,7 bilhões no mês de dezembro do ano passado, se comparada ao mesmo período de 2012 (anexo 1).
O valor repassado no último mês do ano de 2013 foi de R$ 5,9 bilhões, ante os R$ 8,6 bilhões transferidos no mesmo mês do exercício anterior. O montante também é menor do que o valor desembolsado no mesmo período de 2011, quando R$ 6 bilhões foram repassados por meio do fundo.
Os repasses em dezembro foram reduzidos em todos os estados e no Distrito Federal, com destaque para São Paulo, que recebeu R$ 1,6 bilhão em dezembro de 2012 e R$ 1,1 bilhão em dezembro passado, diferença de mais de meio bilhão de reais de um ano para o outro. A transferência em dezembro foi reduzida em R$ 255,8 milhões para Minas Gerais, R$ 213,8 milhões para a Bahia e R$ 211,1 milhões para o Rio de Janeiro, entre outros estados afetados.
Em valores absolutos, dentre os seis blocos de financiamentos que receberam recursos do FNS, a maior queda aconteceu nas ações de “Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar”. Os recursos repassados passaram de R$ 5,3 bilhões em dezembro de 2011 para R$ 3,3 bilhões no mesmo período desse ano, queda de 37,7% ou R$ 2 bilhões (anexo 2).
Outro bloco que recebeu menos verbas foi o das iniciativas de “Atenção Básica à Saúde” que passou de R$ 2,4 bilhões em dezembro de 2012 para R$ 1,5 bilhão no mesmo período de 2013. Os valores desembolsados pelo fundo para “Assistência Farmacêutica” e “Gestão do SUS” caíram em R$ 3,5 milhões e R$ 20,6 milhões, respectivamente, no último mês de dezembro. Como consequência da retração em dezembro, os repasses em janeiro de 2014 já são superiores àqueles de janeiro de 2013. Até o último dia 14 de janeiro, já haviam sido repassados R$ 3,7 bilhões por meio do FNS. O valor é 276,7% maior do que o desembolsado em todo o período de janeiro do ano passado, quando R$ 1,2 bilhão foi desembolsado.
Diante das evidências de que as protelações acima mencionadas – de concentração de ordens bancárias nos últimos dias de 2013, de aumento dos restos a pagar processados, de adiamento da distribuição de receitas para estados e municípios e de postergação de repasses do SUS -, turbinaram, artificialmente, o superávit primário do governo central, submeto à elevada consideração de Vossa Excelência a proposta de encaminhar as questões ora levantadas ao Relator das Contas Gerais do Governo da República referentes à 2013.
É oportuno ressaltar que diante de tantos truques e maquiagens tem crescido em progressão geométrica o descrédito em relação às contas públicas brasileiras. A expressão “contabilidade criativa” já é utilizada no mercado financeiro, entre os empresários, entre os investidores e nos meios de comunicação nacionais e internacionais. Há notícias, inclusive, sobre a insatisfação de técnicos da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) baseada em questionamentos de investidores, sobre a atuação do governo no mercado, com crescentes dificuldades para a rolagem de títulos, fato que obriga o Tesouro a pagar taxas cada vez maiores, o que encarece o perfil da dívida pública. Por esses e outros fatores, permanece no ar a possibilidade do Brasil ser rebaixado por uma agência internacional de classificação de risco.
Dessa forma, eventual apuração minuciosa por parte do Tribunal de Contas a respeito do fechamento das contas públicas em 2013, caracterizando as condições em que o superávit primário foi formado, terá efeito saneador quanto ao uso exacerbado de medidas heterodoxas. Ao que parece, a “contabilidade criativa”, adotada no ano passado, objeto de críticas generalizadas, inclusive por parte dessa Corte, foi substituída pela “contabilidade postergada”.
Tal como destacado no Relatório das Contas de 2012 faz-se, a meu ver, extremamente necessária a criação do Conselho de Gestão Fiscal, de que trata o art. 67 da Lei Complementar 101/2000. Esse Conselho, formado por representantes dos 3 Poderes e esferas de governo, iria minimizar a possibilidade de que as contas públicas fiquem expostas à criatividade de funcionários do Tesouro. Outra iniciativa relevante seria a aprovação do projeto de Lei de Responsabilidade Orçamentária, que altera substancialmente o processo de elaboração dos orçamentos públicos e, entre outros dispositivos, impede o uso indiscriminado dos restos a pagar.
Certo da atenção que Vossa Excelência irá conferir a este pleito, valho-me do ensejo para apresentar-lhe os meus protestos de estima e consideração, colocando-me ao inteiro dispor para prestar-lhe quaisquer outros esclarecimentos que se façam necessários.
Francisco Gil Castello Branco Neto
Secretário-Geral da Associação Contas Abertas
Publicada em : 10/12/2016